Wednesday, July 20, 2005

O Cachecol




Já são três da tarde e ele está atrasado para chegar a lado nenhum, corre para a estrada, mas o sinal dos peões acaba de mudar para verde e ele tem de atravessar quatro faixas que seguem de norte para sul e outras quatro que seguem de sul para norte.
Do outro lado, que por acaso não é o lado nenhum, ondula um cachecol no pescoço dela. Uma das pontas do cachecol, a ponta esquerda, arrasta pelo chão, perdendo as suas fibras no leve roçar ao passeio, que sem ninguém se aperceber vibra a esta subtil manifestação de carinho. Também ela espera atravessar para o outro lado, atravessando primeiro as faixas que seguem de sul para norte e depois as faixas que de norte seguem para sul.
Ele sente que não tem o mesmo tempo que o tempo, e que três minutos podem ser mais do que três minutos, quando um lugar chamado lugar nenhum espera por nós.
Ela tem tempo, não espera por nada porque já sabe que este tempo há muito que estava para acontecer, e três minutos são apenas três minutos, o coração dela segue as batidas do universo.
Ele conta os carros que passam e faz cálculos sobre os que faltam passar. Quantos carros passam em três minutos? Passam mais de norte para sul ou será que passam mais de sul para norte? Questões imbecis que servem para ocupar o tempo que teima em manter-se fiel ao mesmo segundo conduzindo a um desperdício inútil de horas, horas tão úteis para chegar a lado nenhum.


Ela repara na ponta esquerda do cachecol que acaricia o chão, o cachecol que era vermelho começa a ganhar uma outra cor, para a qual não encontra nenhuma definição, nenhum dos nomes que conhece para cores se pode aplicar a esta nova cor do seu cachecol. Mas nem todas as coisas têm nomes e nem por isso deixam de ser coisas, e por isso a nova cor é isso mesmo uma nova cor, nada mais que uma nova cor, que no futuro poderá ser comprada em bisnagas de cor-de-nova-cor e habitar numa palete de tintas de óleo de um qualquer pintor ficando entre o cor-de-laranja, o cor-de-amarelo, o cor-de-azul, o cor-de-verde, o cor-de-rosa, o cor-de-lilás, o cor-de-vermelho.
São três horas e dois minutos e alguns segundos, o sistema automático de regulação dos sinais luminosos nesta cidade inicia o processo que impede os carros que seguem de norte para sul e os carros que seguem de sul para norte continuarem a sua marcha, ficando parados entre sul e norte ou norte e sul, no meio de lado nenhum.
O sinal dos peões mudou para verde, sendo que o relógio bateu as três horas e os três minutos. Ele avança como se toda a sua vida tivesse ensaiado este passo, não havendo a mínima hipótese de perder o rumo em direcção ao lado nenhum.
Do outro lado, ela inicia o mesmo passo com a mesma decisão arrastando atrás de si um cachecol que já foi vermelho, e que agora uma nova cor tem. Um cachecol que sem qualquer pudor continua acariciar o chão, ao mesmo tempo que ensaia uma dança sincronizada com os passos que o guiam. Um pas-de-deux perfeito, se o passo era dado pela perna direita ele deslizava da esquerda para direita, e da direita para esquerda quando a perna esquerda tomava a dianteira.


Ele tinha acabado de atravessar as faixas que seguiam de norte para sul, ela chegou ao mesmo espaço, tendo atravessado as faixas de sul para norte. Ali não havia direcção nenhuma, apenas duas pessoas lado a lado, cada uma do lado esquerdo da outra, apenas um cachecol, que já foi vermelho, as separava naquele momento e naquele lugar. Um cachecol que se esqueceu dos passos ensaiados, iniciando uma nova dança com alguém que já não tinha vontade de chegar mas de partir daquele lado nenhum, para qualquer lado onde melhor pudesse dançar e criar cores cujo nome não há.São três horas e cinco minutos e o chão ainda se sente feliz.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home