Sunday, August 06, 2006

Leituras XV

O que me levou a comprar este livro resume-se a três nomes - Isabel Aguiar Barcelos. A curiosidade em ler um livro escrito pela minha professora do secundário foi maior que o plano de contenção de despesas a que me havia submetido voluntariamente (devo dizer que o meu plano passa exclusivamente pela não compra de sapatos e livros, pois, inexplicavelmente, metade do meu ordenado evapora junto a sapatarias e livrarias).
Isabel Aguiar Barcelos e António Ramos Rosa interpelam-se ao longo das páginas, sem nunca esgotar o tema, sobre aquilo que somos, quem são os bichos que nos habitam, como nos vemos uns aos outros. Enfim, a problemática da identidade discorrida ao longo de uma troca epistolar entre os dois autores, que na poesia das palavras se envolvem num encontro de almas e sentimentos.
Isabel Aguiar Barcelos
"O ser entrou numa rejeição dele mesmo, então eu encontrei-te no nada, sê totalmente alguma coisa: um rosto sem forma geométrica tem os limites desvanecidos. É medonho o teu silêncio, simplesmente porque eu não tenho representação para ele. És sempre uma radiografia de outra coisa que eu não sei o que é, sempre outra coisa, uma carícia que morre de invisibilidade porque os olhos nada alcançam e és meu e eu sou tua, na violência de um sagrado que nunca chega a manifestar-se. Eu morrerei de ti e a casa morrerá contigo, porque todas as coisas que nos tocam na sua não eternidade e nós ajoelhamo-nos para não mais erguermos diante do mundo. O paradoxo de eu te atribuir uma identidade: nunca a rosa foi um exterior a si ou as pétalas, a epiderme da flor. Nunca quisemos nomear deus. Escapámos a toda a semântica. E dissemo-nos tantas vezes que o amor não é um deslumbramento. O amor é um vislumbre, e por isso tu estarás sempre ausente de mim e eu de ti, os dois refractários à luz que se infiltra na nesga de uma janela que está sempre fechada."
António Ramos Rosa responde,
"Nós somos cúmplices, Isabel. Que cumplicidade é a nossa? somos conjurados desarmados? Teremos um pouco de terra para nós, um pouco de tempo, um pouco de animalidade viva e silenciosa para sairmos dos sepulcros sociais? O que podemos fazer será uma construção, uma respiração, um modo de viver, uma palavra sem mensagem, nua como a nossa pobrez, triste como a tristeza, livre como a respiração de uma nuvem? Eu não sou uma árvore nem tu és tão una como uma árvore. O que é uma árvore? Um ser que te ignora e nos ignora? Nós designamos tudo, determinamos, sabemos tudo. Uma árvore é um ser como uma formiga ou uma bactéria, mas é uma árvore. Nós determinamos tudo e perdemos a continuidade infinita do cosmos, do amor, da infância, da nudez. Nós somos como todos, mas fora da banalidade instruída, fora da perversão da humanidade socializada. Nós somos obscuros personagens de uma condição obscura. Não procuro que me esclareças. Sou um bicho que não sabe responder, determinar, mas quer partilhar o seu insondável enigma, o seu desamparo cósmico, a sua impossibilidade fatal de existir. A minha pele não é a de um homem seco e delimitado por axiomas ou por uma ideologia. (...)

1 Comments:

< > said...

Excelente "site", maravilhosa escolha este Bichos de António Ramos Rosa e Isabel Aguiar Barcelos: um diálogo poético que se propaga em desenhos prodigiosos de bichos solares que brotam da mão do poeta de "Animal Olhar". Parabéns.
luís filipe pereira
www.lippepereira.blogspot.com

5:19 AM  

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