Thursday, June 30, 2005

Vidas ...

Acho que somos como um fundo de um rio. Somos o resultado de anos de sedimentarização. E se alguns desses sedimentos vão ficando, outros acabam por ser arrastados pela corrente para dar lugar a novos. E assim vão passando os dias moldados por mãos de luz e de sombra, a que vulgarmente chamamos vida.

Amigo

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!

Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!


Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca

Wednesday, June 29, 2005

A hora da sesta vs Agora Escolha


Se há coisa que tenho saudades são as férias de Verão de três meses. Nessa altura fazia sentido chamar "férias grandes" às férias grandes, eram 92 dias de total despreocupação, em que só parava no dia antes do novo ano lectivo começar.
A minha avó Sebastiana chegava no último dia de aulas e normalmente eu já tinha feito as malas com umas duas semanas de antecedência com coisas completamente inúteis, desde roupa em excesso (tradição que se mantém ainda nos dias de hoje), a livros da escola que nunca eram tocados, a brinquedos trocados por correrias, a um saco cheio de medicamentos que nunca era aberto, enfim um número infindável de coisas que eu recusava deixar ficar em terra, com medo que me viessem a fazer falta. O pior mesmo era mudar de comboio em Campanhã, o peso das coisas, inexplicavelmente, parecia aumentar duas vezes, a que ainda era adicionado o farnel no mínimo com uns 10 kgs, o qual a minha avó não abdicava por nada e nos obrigava a comer até à última migalha.
A própria viagem de comboio já encerrava em si um pouco desse mundo fantástico que caracterizava as férias grandes, deixando adivinhar os dias fantásticos que ainda estavam para vir. E ao contrário dos dias de hoje, os comboios que circulavam na linha do Norte (ao longo do rio Douro) iam cheios de passageiros, mas para que eu e a minha irmã nãos fossemos apertadas nos bancos, sempre que o comboio parava numa estação, nós estendíamo-nos e fingíamos que estavamos a dormir (era mais esperta na altura do que sou agora).
Mas o melhor eram os dias passados em constante galhofa, a correr de um lado para o outro, a descer até ao ribeiro e ver quem regressava primeiro, a descobrir quem é que gostava de quem (eu devia estar apaixonada por uns 5, mas o único que gostava de mim era o Zé Parreco, que eu odiava), a brincar às escondidas em que valia esconder em toda aldeia (chegava a ser desesperante esperar pela última pessoa), a inventar brincadeiras, só havia uma coisa má .... a hora da sesta. Era um verdadeiro tormento ter de me deitar depois de almoço até às 4 da tarde, sem conseguir adormecer, a ouvir o tic-tac do relógio em câmara lenta, e nem valia a pena pedir para ficar a ver televisão, uma vez que só havia dois canais, e se um interrompia a emissão depois do telejornal do almoço o outro só começava lá para as 5 da tarde (porra, sou mesmo antiga).
A revolta à hora da sesta apenas surgiu uns anos mais tarde com o Agora Escolha, não havia nada que nos pudesse afastar do Tom Sawyer e da Ana dos Cabelos Ruivos, verdadeiros heróis da canalhada da altura.
Enfim, estas são meras aparas das memórias de uns dias em que o cansaço era proibido e o riso a palavra de ordem.

Saturday, June 25, 2005

Muitos Burrossados


Eu bem que prometi "burrossados" a quem aparecesse ;)

Muda de vida ...

Um poema não é uma coisa que se coloca sobre o teu dia como um condimento sobre o teu almoço. A vida de uma pessoa não tem material semelhante a nada que conheças. Existir é feito de peças impossíveis de copiar. E a poesia não entra nesse material único - a vida de uma pessoa - como o avião no ar ou o acidente do avião na terra dura. Um poema não é manso nem meigo, não é mau nem ilegal. Os homens não se medem pelos poemas que leram, mas talvez fosse melhor. O que é a fita métrica comparada com algo intenso? Há poemas que explicam trinta graus de uma vida e poemas que são um ofício de demolição completa: o edifício é trocado por outro, como se um edifício fosse uma camisa. Muda de vida ou, claro, muda de poema.
Gonçalo M. Tavares, in 'A Perna Esquerda de Paris'

Thursday, June 23, 2005

A manhã começou assim ...

.... como uma parole incerte.

Wednesday, June 22, 2005

Introdução

A minha introdução não é mais do que uma não introdução a um blog. As introduções são limitativas e espartilham um corpo que ainda nem forma tem. Portanto, é não introduzindo que faço a minha introdução.

Era uma vez um menino chamado Elísio

Todos nós em pequenos ouvimos histórias que começavam desta maneira, mas é bem provável que o Elísio não tenha tido alguém que lhe as contasse. Contudo, ele tem a sua própria história que eu vou contar em seguida.
Era uma vez um menino chamado Elísio, que na altura dos acontecimentos tinha somente 15 anos. Era alto e magro com um sorriso esperto mas olhar vazio. As nossas histórias cruzaram-se num dos últimos dias de Outubro de 2002, nos corredores do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, ele ía responder por pequenos delitos, entre os quais, apedrejamento a comboios da linha de Sintra e eu era a sua defensora. Recordo várias coisas desse dia, entre as quais o riso de gozo da mãe perante a possibilidade de internamento do filho, a falta de dinheiro para comprar uma sandes ao Elísio que não tinha comido nada durante o dia, mas sobretudo, uma resposta do Elísio à Procuradora do M.P.,
"- Mas que sonhos tens tu Elísio para tua vida futura?"
"- Não tenho sonhos, não sei sonhar."
Senti-me profundamente envergonhada por fazer parte de uma sociedade que permite que um miúdo com 15 anos tenha perdido a sua capacidade de sonhar. E mais do que isso, que poderia fazer eu para alterar nem que fosse um pouco o mundo do Elísio. Nada, eu não podia fazer nada, mas no final do dia quando nos despedimos, agarrei-o pelo braço e obriguei-o olhar-me nos olhos e disse-lhe que acreditava que ele poderia ser uma pessoa melhor, que ele já tinha muito valor apenas tinha de o descobrir.
A história do Elísio é só uma entre as muitas que temos assistido nos últimos dias nos meios de comunicação. Não estou, de forma alguma, a desculpar este tipo de criminalidade e achar que devemos ser tolerantes e deixar que a impunidade prevaleça, com receio que a resposta política possa ser considerada racista ou xenófoba. Apenas defendo que além do castigo se deve ir ao fundo do problema social, e fazer com que estes miúdos acreditem mais no seu valor, demonstrando-lhes que podem ser heróis sem que para tal tenham de enveredar pelos caminhos mais fáceis, que são também os mais falaciosos.
A pergunta que eu deixo a quem me possa eventualmente ler, foi escrita pelo Grande Poeta Eugénio de Andrade (no poema que dedicou ao seu afilhado Miguel, no 4.º aniversário deste), Que faremos nós, filho, para que a vida seja mais que cegueira e cobardia?